segunda-feira, 28 de junho de 2010

HISTÓRIA DE UM BRÂMANE- Voltaire

Encontrei nas minhas viagens um velho brâmane, homem bastante sábio, cheio de espírito e erudição;. de resto, era rico, e por isso mesmo ainda mais sábio; pois, como nada lhe faltasse, não tinha necessidade de enganar a ninguém. Seu lar era muito bem governado por três belas mulheres que porfiavam em agradar-lhe; e, quando não se divertia com elas, ocupava-se em filosofar.
Perto de sua casa, que era bonita, bem ornamentada e cercada de encantadores jardins, morava uma velha hindu carola, imbecil e muito pobre.
— Quem me dera não ter nascido! – disse-me um dia o brâmane. Perguntei-lhe por quê. – Há quarenta anos que estudo – respondeu-me – e são quarenta anos perdidos: ensino aos outros, e ignoro tudo; esse estado me enche a alma de tal humilhação e desgosto, que me torna a vida insuportável. Nasci, vivo no tempo, e não sei o que é o tempo; acho-me num ponto entre duas eternidades, como dizem os nossos sábios, e não tenho a mínima idéia da eternidade. Sou composto de matéria, penso, e nunca pude saber por que coisa é produzido o pensamento; ignoro se o meu entendimento é em mim uma simples faculdade, como a de marchar, de digerir, e se penso com a minha cabeça como seguro com as minhas mãos. Não só o princípio de meu pensamento me é desconhecido, mas também o princípio de meus movimentos: não sei por que existo. No entanto, cada dia me fazem perguntas sobre todos esses pontos; é preciso responder; nada tenho que preste para lhes comunicar; falo bastante, e fico confuso e envergonhado de mim mesmo após haver falado.
O pior é quando me perguntam se Brama foi produzido por Vixnu, ou se ambos são eternos. Deus é testemunha de que nada sei a respeito, o que bem se vê pelas minhas respostas. “Ah! meu reverendo – imploram-me, – dizei-me como é que o mal inunda toda a terra”. Sinto-me nas mesmas dificuldades que aqueles que me fazem tal pergunta: digo-lhes algumas vezes que tudo vai o melhor possível; mas aqueles que ficaram arruinados ou mutilados na guerra não acreditam nisso, nem eu tampouco: retiro-me acabrunhado da sua curiosidade e da. minha ignorância. Vou consultar nossos antigos livros, e estes duplicam as minhas trevas. Vou consultar meus companheiros: respondem-me uns que o essencial é gozar a vida e zombar dos homens; outros julgam saber alguma coisa, e perdem-se em divagações; tudo concorre para aumentar o doloroso sentimento que me domina. Sinto-me às vezes à borda do desespero, quando penso que, após todas as minhas pesquisas, não sei nem de onde venho, nem o que sou, nem para onde vou, nem o que me tornarei”
O estado desse excelente homem me causou verdadeira pena: ninguém tinha mais senso e boa-fé. Compreendi que, quanto mais luzes havia no seu entendimento a mais sensibilidade no seu coração, mais infeliz era ele.
Vi, no mesmo dia, a velha sua vizinha: perguntei-lhe se alguma vez se afligira por saber como era a sua alma. Nem chegou a entender minha pergunta: nunca na sua vida refletira um memento sobre um só dos pontos que atormentavam o brâmane; acreditava de todo o coração nas metamorfoses de Vixnu e, desde que algumas vezes pudesse conseguir água do Ganges para se lavar, julgava-se a mais feliz das mulheres.
Impressionado com a felicidade daquela pobre criatura, voltei a meu filósofo e disse-lhe:
— Não te envergonhas de ser infeliz, quando mora à tua porta um velho autômato que não pensa em nada e vive contente?
— Tens razão – respondeu-me ele; – mil vezes disse comigo que seria feliz se fosse tão tolo como a minha vizinha, e no entanto não desejaria tal felicidade.
Essa resposta me causou maior impressão que tudo o mais; consultei minha consciência e vi que na verdade também não desejaria ser feliz sob a condição de ser imbecil.
Expus a questão a filósofos, e eles foram da minha opinião. “No entanto – dizia eu, – há uma terrível contradição nessa maneira de pensar”. Pois de que se trata, afinal? De ser feliz. Que importa, pois, ter espírito ou ser tolo? Mais ainda: aqueles que estão contentes consigo estão bem certos de estar contentes; mas aqueles que raciocinam não se acham tão certos de bem raciocinar. “É claro – dizia eu – que se deveria preferir não ter senso-comum, uma vez que este contribua, o mínimo que seja, para o nosso mal-estar.” Todos foram de minha opinião, e todavia não encontrei ninguém que quisesse aceitar o pacto de se tornar imbecil para andar contente. Donde concluí que, se muito nos importamos com a ventura, mais ainda nos importamos com a razão.
Mas, refletindo bem, parece uma insensatez preferir a razão à felicidade. Como se explica, pois, tal contradição? Como todas as outras. Aí há muito de que falar.

Faminta

Muitas vezes os desejos do corpo se confundem aos do coração.E esse é o perigo de tudo.
O corpo não é independente, não sente sozinho, conta tudo pro coração.
O coração , se arrepia.Bate forte.Vibra.
Todos os pêlos do corpo se eriçam ao pensar naquele corpo negro borbulhante.E logo o coração bate de saudade.
Ele não foi treinado pra dizer que ama.Já ela , nasceu amando tudo que se mova em cima dela, e dentro dela.
Ele não é apropriado.Nada de belo .Nada de brilhante.Nenhuma luz de sapiência.
Quanta cachorrice a dela , a dele, a nossa...Se sentir comida é o seu prêmio.
Se sentir como o prato do dia de um restaurante popular em frente a uma grande obra de construção com mil pedreiros famintos.Ser comida , cheirada , lambida infinitamente ...e violentamente...e muito rapidamente (o que nao é sinonimo de mal digerido, pois a fome faz a gente comer muito rápido).
Já sofreu por não tê-lo convencionalmente ( daquelas formas de mãos dadas , cineminhas dominicais , pique-niques na grama) por ausências de outras experimentações.
Experimentou outros homens.Namorou.Sofreu de novo.Se reergueu.E voltou ao ponto de partida apenas pra se divertir, pra nutrir seu corpo de coisas úteis, de líquidos fúteis, de suores e licores.
Mas as coisas não são desse jeito , e ela bem sabe.Sabe o quanto a sua anatomia é louca e que seu corpo todo é coração (maiakoviskiana).
Seus ultimos banquetes foram os mais deliciosos.O tempo que passaram ausentes um no outro aumentou demais todas as vontades.Quando ela entrava em sua sala , se embriagava com o cheiro que daquele corpo exalava.
Era inebriante...
Bastava senti-lo para que ja quisesse se atirar por entre aqueles pêlos esbranquiçados.
Tentou fugir.Mas o leopardo negro perseguiu a lebre até conseguir devorá-la.
Devorou sem cerimônias.E como a lebre gritava de prazer e terror ao ser devorada...Como a lebre gemia ao se deliciar com o leopardo.
Acabava, molhada , escorrida...lânguida e nutrida.

Agora os tempos são outros.Mas é preciso ter cuidado.A saudade lhe começa a roer os cantos da boca, e as dobras do corpo no dia seguinte ao do banquete.Ela não pode contra a paixão.E a paixão nasce e renasce em qualquer canto, e jorra de suas pernas.

sábado, 19 de junho de 2010

Carta de Intenções - Fabrício Carpinejar

Que eu possa abrir minha casa como uma garrafa de vinho. Que eu possa sair de casa como uma garrafa de champanhe. Que eu possa respeitar opiniões diferentes da minha. Que eu não tente convencer ninguém a pedir desculpas. Que eu possa me desculpar antes do ódio. Que eu possa descobrir a altura dos postes com pipas. Que eu possa pescar conhecidos nos viadutos. Que eu possa escrever cartas de amor de repente. Que eu possa viajar para adorar a distância. Que eu possa voltar para dizer o que não tive coragem. Que eu possa conversar com estranhos para matar a estranheza. Que eu possa comprar fiado minha própria fé. Que eu amarre os sapatos dos filhos como se fosse um terço. Que eu possa gemer diante de uma torta de nozes. Que eu pense em meu amor ao atravessar a rua. Que eu pense na rua ao atravessar o amor. Que eu possa engolir o vento em cada esquina. Que eu possa ouvir as cigarras de noite. Que eu possa diferenciar as árvores. Que eu erre um caminho para descobrir novas paisagens. Que meu carro tenha cheiro de bala de goma. Que eu ajude sem questionar. Que eu dê conselhos sem condenar. Que eu não exija demais dos outros. Que eu exija demais de mim. Que eu possa dançar com os pés nos ouvidos. Que eu possa aprender a tocar violino. Que eu possa aprender a dizer sim. Que eu possa tomar banho de cachoeira. Que eu possa madrugar para esquentar a água do chimarrão. Que eu possa descobrir ervas curativas no corpo de minha mulher. Que eu não acorde com o telefone tocando. Que eu não faça piadas de mau gosto. Que eu seja a vontade de rir. Que eu prepare pratos exóticos para aumentar a fome. Que eu não dedure os amigos para passar bem. Que eu pendure bonecos no varal. Que eu faça sinal para o trem parar. Que eu bata no tapete com a vassoura. Que eu assobie para chamar a alegria. Que eu possa chorar ao assistir filmes. Que aproveite a luz do corpo para ler de noite. Que eu possa embaralhar o sal com o açúcar. Que não faça fofoca fora do bar. Que eu não seduza para confundir. Que eu seduza para iluminar. Que eu mande flores para meu próprio endereço. Que eu estenda a toalha da mesa como se fosse um lençol. Que eu não sacrifique a confiança pela covardia. Que eu possa cuidar da minha cidade como um irmão caçula. Que eu use a voz como campainha. Que eu possa repor os pássaros em seus ninhos. Que eu encontre uma loja para consertar chapéus. Que eu encontre uma loja para consertar cabeças. Que eu não mude de ideologia para conseguir um emprego. Que eu não precise gritar dentro de casa. Que os cachorros tenham faixa de segurança. Que minha mulher me responda os beijos com arrepios. Que eu possa devolver os livros que tomei emprestado. Que eu não peça a devolução dos livros que emprestei. Que eu tenha dúvidas, melhor do que certezas e falir com elas. Que a sorte não seja o cartão furado da loteria. Que eu possa barbear o medo. Que meus amigos deixem de comprar o jornal pelos classificados. Que a única corrente que use seja a do balanço para embalar meu filho. Que a poesia não fique na estante mais escondida das livrarias. Que eu ligue mais para meus irmãos para falar menos dos outros. Que eu escute minha mãe falar de seus problemas até o fim. Que minha mulher possa entender o que nem preciso falar. Que eu conte meu dia na hora do jantar. Que eu cumprimente meu vizinho sem temer a resposta. Que eu possa dar as roupas que não uso. Que eu possa ler revistas antigas em consultórios. Que a cor da pele não seja maior do que a cor do céu. Que os gays possam se beijar fora da novela. Que minha letra saiba montar no cavalo das linhas. Que eu ande de bicicleta para me demorar na cidade. Que eu cuide das plantas da mão alisando a chuva. Que eu não fique cobrando para me aliviar do trabalho. Que eu aprenda a guardar segredos sem jurar por Deus. Que eu tenha menos vaidade. Que eu tenha mais realidade. Que eu invente mentiras convincentes para chegar às verdades. Que eu perca o pavor de supermercado. Que eu não brigue com o caixa pelo tamanho das filas. Que eu não pense na morte antes de dormir. Que eu volte a rezar sem querer. Que eu possa nadar na neblina. Que eu não tenha receio de ser ridículo. Que eu faça amizades falando do tempo. Que eu pare de fumar. Que os ex-fumantes parem com os sermões. Que eu escreva nos livros o que os livros me escrevem. Que eu possa brincar mais sem contar as horas. Que eu possa amar mais sem contar as horas. Que eu possa puxar os cabelos do vento. Que eu use somente as palavras que tenham sentido. Que eu prove a comida nas panelas. Que eu aceite os conselhos da loucura. Que transforme a raiva em vontade de me entender. Que o trânsito não seja sauna. Que eu passe a xingar o pai do juiz no estádio. Que meu time não me engane na última hora. Que eu possa assistir shows com meus filhos na garupa. Que eu atinja o segundo andar das ameixeiras. Que eu abra o capô apenas do piano. Que eu não precise fechar as janelas na sinaleira. Que eu visite mais minha sogra. Que o domingo não termine com o futebol. Que o musgo cresça onde há paredes. Que as heras cresçam onde há muros. Que as escadas cresçam onde há joelhos. Que eu possa caminhar a esmo na respiração. Que eu durma fazendo sexo. Que eu me levante de bom humor. Que eu possa soltar os vaga-lumes que prendi em potes. Que o governo seja competente para ser esquecido. Que eu faça aniversário de criança nos meus 34 anos. Que o verão seja se afogar em dunas. Que eu não pergunte a uma mulher sua idade ou se está grávida. Que eu me lembre do nome de colegas da infância. Que eu me lembre dos finais dos filmes. Que eu lembre do início dos olhos. Que eu me lembre de ser feliz enquanto ainda estou vivo.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Você não moveu

Desculpa.
Te magoei.Te deixei triste...
Talvez tenha te deixado tal como me encontraste naquela noite de jazz...de olheiras profundas, de andar trôpego , de vestes maltrapilhas...encontrando alegria somente nas profundezas do copo de cerveja.
Desculpa...eu não desejei tal coisa.
Mas esta que agora escreve é outra.Esta que agora escreve não sente nada.Ou melhor ...sente tudo.E esse tudo de nada tem a ver com "estar ao lado de quem tem necessidade de mim".Esse tudo meu de agora tem a ver com liberdade, com desejo , com movimentações.
Querido...você não moveu....
Não moveu uma palha
Não moveu um centímetro
Não moveu meu corpo.
E ao deixar meu corpo inerte me acordou pra outras coisas.
Você me necessita, e não estou pronta pra ser necessitada.Queria mesmo era me necessitar de você...e você me nutrir de coisas indecifráveis.De coisas indecentes...de coisas...
Ah que droga!Não te necessitei...e você se necessitou de mim...querendo ser amamentado...querendo ser nutrido pelo líquido aminiótico.Não te nutri apenas por achar que precisava de comidas substanciais como ... "arroz e feijão".
Te abandonei, e não vou ditar nenhum motivo especifico.Pois tudo acaba.E tudo começa.Vai acabar pra mim tambem.E vai de novo começar.Lá vai esta daqui embriagar-se na solteirice.

domingo, 13 de junho de 2010

O corpo é templo do espírito santo, disse -me alguém adepto de uma certa religião que me dá náuseas.O meu espírito é santo enquanto físico.Ele se abrasa junto com o corpo.Meu espítrito não atravessa paredes, e sim corpos.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Incesto


*Arte de Mariana Bickhova*
Você não está pronta para isso.
-Não estou pronta?Não estou pronta para quê?Não estou pronta por quê?
-Não está pronta.Vá embora e pense nisso querida.
Revirei -me em cogitações.Fumei cigarros.Esbofetei-me.
Ah Você sempre me foi necessário , agora que me vi livrada de uma morte lenta.
E como se não bastasse , agora dera pra me lançar verdades as quais "não estou pronta".
Você representou pra mim uma espécie de filho.Uma criança a ser cuidada, abraçada ,acalentadae por fim amada.Porém um filho amante .Um filho que eu amamentei sexualmente.Um filho que sugou meu seio com fome de homem e não de menino.
E agora tu te rebelas contra a tua mãe , me dizendo que não estou pronta?
Zigue zaguei, tomei um onibus pra casa, aspirinas para dormir, café para acordar.
Ah meu filho desejado...
Você foi covarde.
Você foi frio.
Você foi pecador.
Como não pôde suportar sua proteção de mãe ( a mais afável)?Como não ter querido esse meu amor tão amor materno.Por que não se lançou de vez naqueles meus braços.Os únicos que lhe queriam tão bem.
Querido , você ainda depende de mim, do meu afago e fogo...Não vá pensando que já é um homenzinho.Droga.
Meu bebê inocente eu te perdôo.Mas nunca mais faça isso com sua genitora.Volte para o seu cólo.Estou a te esperar com meu seio tão cheio de leite.Tão cheio do liquido vivificador...do liquido germinador da vida.

O tolo e a Bailarina


*Arte de Degas*
Naquela suave tarde em que de tudo se esquecia, despertou-se com lembranças sexuais infindas. Aquelas noites lustrosas, em que luzes piscam, e corpos tremem um leve sorriso lhe pintou a boca.
Aquele senhor quase idoso lhe trouxe noites quase perfeitas, se não fosse o desdém com que lhe tratava após aquele amor rápido e urgente dificilmente feito na cama. Retornava ao seu lar de família (pai, mãe, irmãos e cachorros) com ares de mulher feita e dona de si, e acordava com a espada de arrependimento e da saudade cravada no peito.
As parcas horas que passavam juntos, em qualquer canto da cidade, eram frutíferas. Se havia algo que ele,não podia permitir acontecer, era que ela, nua em pêlo, deixasse de gozar todos os gozos possíveis naquelas suas mãos enrugadas, e aqueles braços fortes de veias protuberantes.
Eram tantos tapas, e gritos, puxões de cabelos, e arranhões, e mordidas...que se por ventura, ela por vingança ou capricho quisesse acusá-lo de violência, seria por demais fácil de comprovar.
Aquele homem a quem tanto amara, e por quem seu corpo de rolinha machucada, tanto gritava o nome por breves instantes de volúpia, não tinha menos que cinqüenta anos. E ele, nunca revelou-lhe a idade, por assumir ser escandaloso a diferença entre eles.Mas ela, embora tinha menos da metade de sua idade, se considerava (e realmente o era) muito mais idosa em sapiência e inquietude.Não conseguia compreender claramente por que era tão necessário aquele homem bruto e ignoto lhe rasgar as entranhas com seu sexo de cavalo colossal, lhe molhar os seios com a saliva quente, e trucidar aquele corpo quieto.Mas sim, era cada vez mais necessário pra ela (pobre moça infeliz) se embrenhar naqueles pêlos brancos e naquela pele negra borbulhante.
Xingamentos dos mais sujos e tórridos proferia ele em cima dela, e a feria como uma estaca incandescente perfurando seus ouvidos.Mas era tarde pra desistir .Era tarde para vestir a calcinha de algodão e sair de cabeça erguida.O motel barato já havia sido pago.Ela escutava então triste, mas gozava feliz em cima daquele homem rígido, e oco.
Depois voltava novamente para a casa com ares libertinos, com a cabeça baixa, e com o sexo exorcizado.No dia seguinte, sempre arrependida, proferia uma infinidade de impropérios àquele homem, e o culpava sempre pelo acontecido.Ele já acostumado, fazia-se de ouvidos moucos.Já sabia quanto tempo duraria aquele falso ódio daquela moça triste e enlouquecida, a quem de uma forma ou de outra fazia tão feliz.
Sara sempre fora uma moça sabida, forte, segura.Devorava com ardor a literatura dos grandes autores.Conhecia como poucos a boa musica.Moça de bom gosto, sabia dissertar sobre arte como poucos de sua época e de sua idade.
E foi nos seus estudos de música que Sara conheceu Antonio Ricardo, homem rude do morro, sambista, era o seu professor numa considerável escola de musica da cidade.E foi como por brincadeira que os dois começaram a conversar no final de uma das aulas de instrumento.Uma conversa boba, insignificante:
-Perdi meu pai no ano passado, dizia Antonio e Sara fingindo-se interessada conversava no mesmo nível:
- Minha mãe foi internada há pouco tempo, por problemas de coração.Quase morreu.Fiquei preocupada.Mas o pior já passou, dizia ela tentando manter uma conversa que o interessasse.Afinal não sabia exatamente de que se ocupava a cabeça desses sambistas.
E foi na semana seguinte, na mesma aula, que sentiu olhares diferentes dos de antes daquele senhor que tinha idade para ser o seu pai.Um olhar lúgubre, quase esfomeado.Sentiu-se desejada, como há muito não acontecia.Afinal de contas, já não sabia mais o que era o prazer de uma conquista.Há muito tempo que estava imersa nas poesias, e livros, e filmes.Pouco tempo tinha para essas coisas.
Uma onda de calor percorreu todo o seu corpo (como há muito tempo não acontecia).Sim, ele com um simples olhar a deixou ouriçada.Fim de aula.Ele a chama junto a ele.Lhe dá um abraço.Um abraço lúgubre, cheirando a lascívia, e lhe lança outro olhar daqueles.Ela, sozinha, volta pra casa com pensamentos inquietos:
-Ora, mas o que queria ele?
Na semana seguinte, se esparramaram numa cama de motel.E ela, aprendeu em uma semana todas as artes sexuais existentes no mundo (com o perdão do exagero).Depois disso veio a vontade infinda de se ver, os ciúmes, os sentimentos de posse, os palavrões, as porradas, as lágrimas, os arrependimentos.Porém Sara nunca consegui se livrar daquela chateação que chamavam de desejo.Uma paixão do corpo.
Quis casar-se com ele, mas sabendo que aquilo tudo era uma besteira.Aquele homem feio e ignorante , indubitavelmente nunca a faria feliz de verdade, exceto na cama.Mas e quando se enjoarem?E depois do sexo de que falariam?
Sara não ponderava sobre isso, pensava com o sexo, somente com o sexo...precisava mais do que sabia daquelas sensações indizíveis que ele lhe provia.
Mas sim, Sara desejava este homem pra si de maneira indecifrável...enquanto que ele se divertia com meninas de baixo nível, e nunca se interessou pelos seus pensamentos vociferantes.
Sara nunca o amou de verdade...
"Um homem jamais pode entender o tipo de solidão que uma mulher experimenta. Um homem se deita sobre o útero da mulher apenas para se fortalecer, ele se nutre desta fusão, se ergue e vai ao mundo, a seu trabalho, a sua batalha, sua arte. Ele não é solitário. Ele é ocupado. A memória de nadar no líquido aminótico lhe dá energia, completude. A mulher pode ser ocupada também, mas ela se sente vazia. Sensualidade para ela não é apenas uma onda de prazer em que ela se banhou, uma carga elétrica de prazer no contato com outra. Quando o homem se deita sobre o útero dela, ela é preenchida, cada ato de amor, ter o homem dentro dela, um ato de nascer e renascer, carregar uma criança e carregar um homem. Toda vez que o homem deita em seu útero se renova no desejo de agir, de ser. Mas para uma mulher, o climax não é o nascimento, mas o momento em que o homem descansa dentro dela."


Anais Nin