sábado, 5 de maio de 2012

O Eremita - Voltaire

O EREMITA- De Voltaire
Assim caminhando, encontrou um eremita, cuja venerável barba branca lhe tombava até a cintura. Tinha na mão um livro que lia atentamente. Zadig parou e fez-lhe uma profunda reverência. O eremita saudou-o com um ar tão nobre e tão bondoso, que Zadig teve curiosidade de conversar com ele. Perguntou-lhe que livro lia. — É o livro dos destinos — disse o eremita.- Quer ler um pouco? Pôs o livro nas mãos de Zadig que, embora versado em várias línguas, não pôde decifrar-lhe uma única letra. Isso ainda mais lhe aumentou a curiosidade. — Pareces bastante aborrecido — disse-lhe o ancião. — Motivos não me faltam! — exclamou Zadig. — Se me permites que te acompanhe — tornou o velho, — talvez eu te possa ser útil: tenho às vezes derramado sentimentos de consolação na alma dos infelizes. Zadig sentiu-se tomado de respeito ante o ar, as barbas e o livro do eremita. Achou-lhe superiores luzes na conversação. Falava o eremita do destino, da justiça, da moral do soberano bem, da fraqueza humana, das virtudes e dos vícios, com tão viva e tocante eloqüência, que Zadig sentiu-se atraído para ele por invencível encanto. Pediu-lhe com insistência que não o deixasse até chegarem a Babilônia. — O mesmo favor te peço — disse-lhe o velho. — Jura, por Orosmade, que não te separarás de mim, por mais estranhos que te pareçam os meus atos. Zadig jurou, e partiram juntos. Chegaram os dois viajantes a um soberbo castelo. O eremita pediu hospitalidade para si e para o jovem que o acompanhava. O porteiro, que se poderia tomar por um grão-senhor, os introduziu com uma espécie de desdenhosa complacência. Foram apresentados ao criado-mor, que lhes mostrou os magníficos apartamentos do amo. Permitiram-lhes que sentassem à extremidade da mesa deste, sem que o senhor do castelo se dignasse honrá-los com um olhar, durante a ceia; mas foram servidos, como os outros, com refinamento e profusão. Fizeram com que se lavassem em uma bacia de ouro, guarnecida de esmeraldas e rubis. Levaram-nos a deitar-se em um belo apartamento, e no dia seguinte um criado entregou a cada qual uma moeda de ouro; após o que, foram despedidos. — O dono da casa — disse Zadig em caminho — parece-me um homem generoso, embora um pouco altivo; exerce nobremente a hospitalidade. Dizendo tais palavras, percebeu que uma espécie de bôlsa muito grande que usava o eremita parecia distendida e inflada viu ali a bacia de ouro guarnecida de pedrarias, que este havia furtado. Não ousou dizer coisa alguma; mas sentia-se tomado da estranha surpresa. Pelo meio-dia, o eremita apresentou-se à poria de uma casa muito pequena onde morava um rico avarento; pediu hospitalidade por algumas horas. Um velho criado mal vestido recebeu-o rudemente e fez entrar o eremita e Zadig na estrebaria, onde lhes serviram algumas azeitonas podres, pão duro e cerveja estragada. O eremita bebeu e comeu com um ar tão contente como na véspera. Depois, dirigindo-se ao velho criado, que os observava para ver se não roubavam nada e os instava a partirem, deu-lhe as duas moedas de ouro que recebera de manhã e agradeceu-lhe muito as suas atenções. — Peço-lhe acrescentou — que me leve à presença de seu amo. O criado, atônito, introduziu os dois viajantes. — Magnífico senhor — disse o eremita, não posso deixar de agradecer-vos humildemente a nobre maneira como nos recebestes: dignai-vos aceitar esta bacia de ouro como modesto penhor de minha gratidão. O avarento quase caiu para trás. Sem lhe dar tempo para que voltasse a si do assombro, o eremita partiu às pressas com o seu jovem companheiro. — Senhor, que vejo eu? — diz-lhe Zadig. — Não vos pareceis em nada com os outros homens, roubais uma bacia de ouro guarnecida de pedrarias a um senhor que vos recebe magnificamente e a presenteais a um avarento que vos trata com indignidade. — Meu filho — respondeu o velho, — esse homem magnífico, que só recebe os estranhos por vaidade e para fazê-los admirar suas riquezas, se tornará mais sensato; — o avarento aprenderá a praticar a hospitalidade: não te espantes de nada, e segue-me. Zadig não sabia ainda se tratava com o mais louco ou o mais sábio dos homens; mas o eremita falava com tanta autoridade que Zadig, ligado aliás pelo juramento, não pôde deixar de segui-lo. Chegaram de noite a uma casa de aspecto agradável mas simples, onde nada denunciava prodigalidade ou avareza. O dono era um filósofo retirado do mundo, que cultivava em paz a sabedoria e a virtude, e que no entanto não se aborrecia. Aprouvera-lhe construir aquele retiro, onde recebia os visitantes com uma nobreza que nada tinha de ostentação. Foi em pessoa ao encontro dos dois viajantes, a quem primeiro fez repousar num cômodo apartamento. Algum tempo depois veio convidá-los para uma refeição sadia e variada, durante a qual se referiu discretamente às últimas revoluções de Babilônia. Pareceu sinceramente devotado à rainha e mostrou-se desejoso de que Zadig tivesse comparecido ao torneio para disputar a coroa. “Mas os homens — acrescentou — não merecem um rei como Zadig”. Este enrubescia e sentia redobrarem seus sofrimentos. Convieram, na conversação, em que as coisas deste mundo não marchavam sempre ao agrado dos mais sensatos. O eremita sustentava que não se conheciam os caminhos da Providência, e que os homens faziam mal em julgar um todo de que só percebiam a mais ínfima parte. Falaram em seguida sobre as paixões. — Ah! como são funestas! dizia Zadig. — São como os ventos que enfunam as velas do barco — retrucou o eremita: — submergem-no às vezes; mas, sem o seu auxílio, o barco não poderia vogar. A bílis nos torna coléricos e doentes; mas, sem a bílis, não poderíamos viver. Tudo é perigoso neste mundo, e tudo é necessário. Falou-se do prazer, e o eremita provou que é um presente da divindade: “Pois — disse ele o homem não pode dar a si próprio nem sensações nem idéias, recebe tudo; a dor e o prazer lhe vêm de fora, como a sua existência.” Zadig admirava-se de como um homem que fizera coisas tão extravagantes podia raciocinar tão bem. Enfim, depois de uma palestra tão instrutiva quão agradável, o proprietário conduziu os hóspedes ao quarto, bendizendo o Céu por lhe haver enviado dois homens tão sábios e virtuosos. Ofereceu-lhes dinheiro de um modo natural e nobre que não podia melindrar. O eremita recusou-o e despediu-se, dizendo que partiria para Babilônia antes do raiar do dia. A separação foi comovente; Zadig, sobretudo, sentia-se cheio de estima e simpatia por aquele homem tão amável. Quando o eremita e ele se viram a sós no apartamento, fizeram por muito tempo o elogio de seu hospedeiro. O velho, alta madrugada, despertou Zadig. — Temos de partir — disse ele. — Mas, enquanto todos ainda estão dormindo, quero deixar a esse homem um testemunho de minha estima e afeição. Dizendo tais palavras, tomou um archote e ateou fogo à casa. Zadig, horrorizado, pôs-se aos gritos, e quis impedi-lo de cometer tão revoltante ação. O eremita arrastava-o com uma força superior; a casa estava em chamas. Quando já se achava bastante longe com o companheiro, o velho pôs-se a contemplar tranqüilamente o incêndio. “Graças a Deus! — disse ele. — Eis a casa do nosso querido hospedeiro completamente destruída! Que homem feliz!” A estas palavras, Zadig viu-se tentado, a um tempo, a romper em gargalhadas, a encher de injúrias o venerável ancião a bater-lhe, e a fugir, mas não fez nada disso e, sempre dominado pela ascendência do eremita, seguiu-o, a contragosto, até a próxima pousada. Era em casa de uma viúva caritativa e virtuosa que tinha um sobrinho de catorze anos, cheio de atrativos e que era a sua única esperança. Fez, o melhor possível, as honras da casa. Na manhã seguinte, ordenou ao sobrinho que acompanhasse os viajantes até uma ponte que, estando meio arruinada, se tornara de passagem perigosa. O jovem, solícito, marchava à frente deles. Ao chegarem à ponte, disse-lhe o eremita: — Vem cá, devo dar uma amostra de gratidão à tua tia. Toma-o então pelos cabelos e arremessa-o ao rio. O menino tomba, reaparece um instante à tona dágua, e é engolido pela torrente. — O monstro! ó celerado! — bradou Zadig. — Tu me havias prometido mais paciência — disse-lhe o eremita, interrompendo-o. — Pois fica sabendo que, debaixo das ruínas dessa casa que a Providência incendiou, o proprietário encontrou um tesouro imenso; e é bom que saibas que esse jovem, a quem a Providência torceu o pescoço, teria assassinado a sua tia dentro em um ano, e a ti daqui a dois anos. — Quem te disse tal coisa, bárbaro? gritou Zadig. — E, mesmo que houvesses lido esse acontecimento no teu livro dos destinos, acaso te será permitido afogar uma criança que não te fez mal nenhum? Enquanto assim falava, Zadig percebeu que o velho já não tinha barba, que o seu rosto adquiria os traços da juventude. Desapareceu-lhe o hábito de eremita; quatro belas asas recobriam um corpo majestoso e resplandecente de luz. — Ó enviado do Céu! Ó anjo divino! exclamou Zadig, prosternando-se. — Desceste então do empíreo para ensinar um frágil mortal a submeter-se às ordens eternas? — Os homens — disse o anjo Jesrad — julgam tudo sem nada conhecer: eras tu, dentre todos os homens, quem mais merecia ser esclarecido. Zadig pediu permissão para falar. — Desconfio de mim próprio — disse ele, mas ousarei pedir-te que me esclareças uma dúvida: não seria melhor corrigir esse menino, e torná-lo virtuoso, em vez de afogá-lo Se ele tivesse sido virtuoso, e vivido — tornou Jesrad, — a seu destino seria o de ser assassinado com a mulher que deveria desposar, e com o filho que deveriam ter — Como! — exclamou Zadig. — É então necessário que haja crimes e males, e que os males tombem sobre as pessoas de bem? — Os maus — respondeu Jesrad — são sempre infelizes: servem para experimentar um pequeno número de justos espalhados sobre a terra, e não há mal de que não provenha um bem. — Mas — disse Zadig — e se só houvesse bem, e nenhum mal? — Então — replicou Jesrad — este mundo seria outro; o encadeamento dos fatos obedeceria a uma outra ordem de sabedoria; e essa outra ordem, que seria perfeita, só pode existir na morada eterna do Ser Supremo, de quem o mal não pode aproximar-se. Criou Ele milhões de mundos, nenhum dos quais se pode assemelhar ao outro. Essa imensa variedade é um atributo de seu poder imenso. Não há nem duas folhas de árvore na terra, nem dois globos nos campos infinitos do céu, que sejam semelhantes; e tudo o que vês sobre o pequeno átomo em que nasceste devia estar no seu lugar e no seu tempo fixo, conforme as ordens imutáveis daquele que tudo abrange. Os homens pensam que esse menino que acaba de perecer caiu no rio por acaso: tudo é prova, ou punição, ou recompensa, ou providência. Lembra-te daquele pescador que se julgava o mais infeliz dos homens. Orosmade te enviou para lhe mudar o destino. Frágil mortal, cessa de arguir contra aquilo que cumpre adorar. — Mas — disse Zadig... E, enquanto dizia mas, já o anjo alçava o vôo para a — décima esfera. Zadig, de joelhos, adorou a Providência, e submeteu-se. O anjo gritou-lhe das alturas: — Segue para Babilônia.