terça-feira, 1 de março de 2016

Os homens que não amavam as mulheres

Ultimamente, ao ler e entrar cada vez mais em contato com feministas lésbicas eu passei a enxergar minha sexualidade por outra ótica, e passei a enxergá-la como um obstáculo à minha real emancipação. É incrível a lucidez das lésbicas pra falar de gênero, ou melhor, é incrível a lucidez de mulheres que se libertaram da manipulação e da necessidade de aprovação masculina pra falar de gênero. Sou majoritariamente heterossexual, e com isso quero dizer que já me apaixonei por mulheres e sou aberta a envolvimento afetivo com mulheres, porém a maioria esmagadora das vezes que me apaixonei na vida, e a maioria de todas as minhas experiências até hoje foram heterossexuais. Não consegui ainda descobrir até que ponto a socialização feminina e a heterossexualidade compulsória, às quais fui submetida desde o nascimento, influenciaram a vivência da minha sexualidade. Acredito que essa descoberta seja um processo e, nesse ponto do caminho, me identifico como bissexual, majoritariamente heterossexual. Ser uma mulher negra e feminista em um relacionamento hétero é um misto de incompletude, abuso, inquietação e culpa. É uma prisão que a minha consciência de que todo relacionamento heterossexual será, em algum nível, abusivo não me blinde de me apaixonar por homens. Cada vez mais em relacionamentos heterossexuais eu sou colocada diante de uma verdade dura que eu não queria realmente acreditar: os homens não amam as mulheres. Não, os homens não nos amam, não são capazes de algo tão grande por nós. Não são capazes de se deixar por nós, de se abandonar, de abandonar seu lugar de privilégios por nós. A assimetria que eu enxergo nos relacionamentos heterossexuais é perversa: os homens são socializados pra independência, pra manipulação e pro abuso; e as mulheres, pra dependência, pra carência e pro perdão, assim os dois lados se completam em prol da manutenção do domínio masculino. Essa assimetria é cruel porque faz com que as mulheres se deem muito fácil, faz com que perdoem sempre tudo e que sempre carreguem sozinhas o fardo da manutenção do relacionamento. Ao mesmo tempo faz com que os homens ocupem a posição de conformidade, de “errei de novo, mas me desculpa, sou homem, estou tentando”, o homem se sentirá suficiente, sentirá que já está fazendo muito por apenas tentar e nos manipulará todo o tempo para acreditar que nós é que somos muito difíceis e exigentes. Aqui é importante destacar que ele não trabalhará sozinho nessa manipulação, contará com forte e indispensável ajuda da sociedade patriarcal que, à todo tempo naturaliza abusos em nossa cabeça e faz com que sintamos culpa por não aceitá-los. Cresci, como muitas meninas, envolta em um ambiente familiar em que observei acontecerem muitos relacionamentos abusivos à minha volta, e foi a partir dessa observação dos abusos cotidianos da vida conjugal que hoje eu entendi o lugar que acabei ocupando dentro de relacionamentos abusivos. Cresci vendo minha mãe, minhas tias, vizinhas, perdoando, sempre e sistematicamente se anulando e aceitando abusos em nome da manutenção de um relacionamento que não era bom pra elas, mas quem eram elas sem um homem do lado? Nós temos medo da solidão, e por isso nos submetemos a tudo, porque nos ensinaram que nada pode ser pior que estar sozinha. Para a sociedade patriarcal uma mulher solteira e que distoa, em algum nível, dos padrões impostos de beleza e feminilidade é a materialização do fracasso e da infelicidade. Sim, é essa a resposta: suportamos e mantemos o que não queremos por medo. Hoje acredito que aprender a lidar com a solidão talvez seja a única ferramenta efetiva contra relacionamentos abusivos. Aprender a ser só não é uma arma com a qual sou capaz de enfrentar o patriarcado de peito aberto e sair ilesa, mas um escudo com o qual posso alterar minha realidade individual. Estar só nos traz consciência, discernimento, traz força e coragem também. Estar só me trouxe o discernimento de quando o relacionamento é bom pra mim, ou não, me trouxe consciência de que a minha solidão não é um fracasso, de que não preciso anular quem eu sou e me submeter a abusos para estar bem comigo mesma. Minha solidão é um processo de resistência à cultura patriarcal de domínio e de abuso masculino sobre meu corpo e minha humanidade. Aprendemos desde cedo que a mulher é quem deve prezar pela manutenção do lar, a qualquer custo, a custo da própria liberdade, dos próprios sentimentos e saúde emocional. Crescemos aprendendo que a mulher deve ser tolerante, que devemos “segurar o homem”, que devemos ser flexíveis e aceitá-lo como ele é porque “homem é assim mesmo”, que devemos ter saúde emocional e paciência além da conta pra aguentar “a natureza selvagem e viril do macho”. Eis aí parte da desgraça da feminilidade. A nossa desgraça é bonita, a gente aprende a confiar e a perdoar muito facilmente e isso é bonito, tudo isso é, na verdade, super bonito. Tudo isso que a gente sente, toda essa nossa capacidade de amar, de se dar é de uma confiança absurda. Nós compartilhamos com os homens a beleza da nossa desgraça e acreditamos que eles podem entendê-la, acolhê-la, que podem nos amar. Nós damos aos homens uma confiança que eles não merecem, e lhes dedicamos um amor de uma grandeza que eles não tem a capacidade de valorizar. Acreditamos, sempre, e de novo, e outra vez, que tudo pode ser diferente, há uma beleza nessa inocência, uma beleza cruel, uma beleza perversa, uma beleza que sangra e que nunca cicatriza. Uma coisa que eu aprendi é que os meus sentimentos e minha desgraça, nada disso nunca vai estar acima do privilégio masculino. No fim os homens sempre vão agir se priorizando, foi o que eles aprenderam a fazer, e a gente sempre vai agir se secundarizando, é o que a gente aprendeu a fazer. A manipulação masculina se apresentará de formas sutis: frieza, chantagem emocional, silêncio. E, se não estivermos atentas, nosso amor servirá à manutenção do patriarcado, e a manipulação masculina será capaz de inverter o sentimento de culpa sempre pro nosso lado. O “amor” masculino precisa da nossa obediência, subserviência, da nossa submissão e servidão sexual pra se manter. O “amor” masculino é muito necessitado da nossa objetificação, consequentemente, da nossa desumanização. O “amor” masculino é algo muito despreocupado com o nosso cuidado, com os nossos sentimentos. O “amor” masculino é extremamente volátil e egoísta, é algo capaz de sumir num passe de mágica em nome da manutenção dos próprios privilégios. E foi nesse processo de vivência de todas as nuances em que pode se apresentar o abuso e a manipulação masculina dentro de relacionamentos heterossexuais, que eu por fim entendi. Entendi que devo matar essa beleza dentro de mim, devo resistir à feminilidade que me foi imposta e me colocar sempre em primeiro lugar. Devo me priorizar, me ouvir, estar atenta aos meus sinais. Devo parar de me preocupar com os homens de uma forma que eles jamais serão capazes de se preocupar comigo. Dentro de um relacionamento heterossexual, devo ser mais egoísta, devo reverter grande parte do meu cuidado com o outro em auto cuidado. Devo ser “complicada” “difícil” e “exigente”, porque tudo isso é por mim. Um homem que quisesse nos amar deveria entender tudo isso, deverá entender que a assimetria socialmente imposta pede como resposta que tentemos construir, em esfera micropolítica, um relacionamento contrariamente assimétrico. Devemos resistir aos comportamentos padrão de feminilidade e masculinidade para tentar tornar a relação homem-mulher não-sistematicamente abusiva. Os homens deverão sim priorizar sempre o que a gente sente com relação ao que eles fazem, e não sempre jogar de novo nas nossas costas o peso e a responsabilidade de lidarmos sozinhas com as nossas inseguranças. Isso não é amor, isso é egoísmo , isso é controle e isso é domínio masculino. Disponível em https://negrasolidao.wordpress.com/2015/07/02/os-homens-que-nao-amavam-as-mulheres/